9.12.06

mais uma vez
mal
cansado, parado, calado
...

14.10.06

lspace

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October 07

Um homem com uma dor

um homem com uma dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
como se chegando atrasado
andasse mais adiante




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October 02

...

Os olhos são como mares - dois profundos mares de fossas abissais.

Mais a leste, são doces com os primeiros raios de sol.
A oeste, violentos e mordem, ao cair da noite.
Norte e são diretos, frios e certos.
E no sul - as paixões estão ao sul - arquejam e rebelam-se. Como requebram ao sul!




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September 26

Leia (Paul Valéry)

Leia... Leia!
O homem que trabalha, que minimamente ganha a vida, que leia! Leia em casa, no ônibus, no metrô. Leia naquela hora que os meios de comunicação devoram contando casos de polícia, bobagens incoerentes, mexericos e fatos muito menores, cuja confusão e abundância parecem feitas para aturdir e simplificar grosseiramente os espíritos.




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September 23

Modéstia (Arthur Schopenhauer)

Quem fez da modéstia uma virtude esperava
que todos passassem a falar de si próprios
como se fossem idiotas.

O que é a modéstia senão uma humildade
hipócrita, através da qual um homem pede
perdão por ter as qualidades e os méritos que os
outros não têm?




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September 14

Amor... (clarice Lispector)

Amor é quando é concedido participar
um pouco mais.
Amor é a grande desilusão
de tudo mais.
Amor é finalmente
a pobreza.
Amor é não ter
inclusive amor
É a desilusão
do que se pensava
que era amor.
Amor não é prêmio
por isso não envaidece.




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August 27

Olhos

Seus olhos, - Nunca havia visto desses. Não tão de perto - perdidos em um rosto calmo.
E o rosto é como o silêncio.
Belo como o silêncio.
Livre de oscilações bruscas. Calmo, sereno.

Assim te adoro. E temo.




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August 18

Provocações (Luís Fernando Veríssimo)

A primeira provocação ele agüentou calado. Na verdade, gritou e esperneou. Mas todos os bebês fazem assim, mesmo os que nascem em maternidade, ajudados por especialistas. E não como ele, numa toca, aparado só pelo chão.
A segunda provocação foi a alimentação que lhe deram, depois do leite da mãe. Uma porcaria. Não reclamou porque não era disso.
Outra provocação foi perder a metade dos seus dez irmãos, por doença e falta de atendimento. Não gostou nada daquilo. Mas ficou firme. Era de boa paz.
Foram lhe provocando por toda a vida.
Não pode ir a escola porque tinha que ajudar na roça.
Tudo bem, gostava da roça. Mas aí lhe tiraram a roça. Na cidade, para aonde teve que ir com a família, era provocação de tudo que era lado. Resistiu a todas. Morar em barraco. Depois perder o barraco, que estava onde não podia estar. Ir para um barraco pior. Ficou firme.
Queria um emprego, só conseguiu um subemprego. Queria casar, conseguiu uma submulher. Tiveram subfilhos. Subnutridos. Para conseguir ajuda, só entrando em fila. E a ajuda não ajudava.
Estavam lhe provocando.
Gostava da roça. O negócio dele era a roça. Queria voltar pra roça.
Ouvira falar de uma tal reforma agrária. Não sabia bem o que era. Parece que a idéia era lhe dar uma terrinha. Se não era outra provocação, era uma boa.
Terra era o que não faltava. Passou anos ouvindo falar em reforma agrária. Em voltar à terra. Em ter a terra que nunca tivera. Amanhã. No próximo ano. No próximo governo. Concluiu que era provocação. Mais uma.
Finalmente ouviu dizer que desta vez a reforma agrária vinha mesmo. Para valer. Garantida. Se animou. Se mobilizou. Pegou a enxada e foi brigar pelo que pudesse conseguir. Estava disposto a aceitar qualquer coisa. Só não estava mais disposto a aceitar provocação.
Aí ouviu que a reforma agrária não era bem assim. Talvez amanhã. Talvez no próximo ano... Então protestou.
Na décima milésima provocação, reagiu. E ouviu espantado, as pessoas dizerem, horrorizadas com ele:
- Violência, não!




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August 13

mais à noite

depois de um olhar profundo, nos olhos dela e insinuante:
- Acredito nos seus olhos. Suas sombrancelhas é que me põem medo.
- Pois, acredite em meus olhos e aproveite minhas sombrancelhas...




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August 06

a um passo de LS Produções

Precisa-se, urgentemente, de um promotor comercial megalomaníaco, com lingua afiada e sem pudores.
Para maiores informações, email-me.

:)




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August 05

...

novos ares de uma persistente brisa




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July 30

back in the USSR

tava russo o negócio, no ônibus de volta. banco desconfortável, cheiro insuportável e uma dor de cabeça dos diabos...




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July 28

regresso

hnf, estou voltando das breves férias no cerrado. sentirei saudades... aliás, como deixar de senti-las?




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July 23

flor do cerrado

que saudades de você, princesa.

23.9.06

Bernardo, mal-cheiroso, com roupas amassadas, olheiras roxas. Sobre os ombros tensos, retesado o pescoço curvava-se à frente. Seu tronco apoiava-se nos antebraços cruzados na borda da mesa.
Eles estavam perfilados diante da mesa de um bar. Bernardo levemente bêbado, tomava conhaque. A moça encontrava-se rigorosamente sóbria.
Ela sustentava sua altivez através de um leve e constante sorriso. Bernardo não lidava muito bem com aquilo, com aquele sorriso, seus olhos davam evidências: fixos adiante e inquietos. Algo acontecia em silêncio. Ele sabia que algo obscuro pairava naquele sorriso.

- O que há?
- Como assim?
- O que há, com você? Por que esses lábios arreganhados?
- Como assim?!
- Olha, você sabe que não precisa me esconder nada, que esse é nosso trunfo. Diga-me o que há.
- Não há nada. Diga-me você. O que há com você, não para de beber faz duas semanas.
- Estou muito bem. Talvez, um tanto cansado... Estou bem.
- Nota-se. Cheiro forte de cigarro, bêbado... Olha, aqui, para mim.
- Olho, claro, com todo o prazer. Mas este seu sorriso me tira do sério. Compaixão... Não sei o que faço nesses dias que passam... Tenho... Tenho me incomodado com alguma... coisa. Parece-me que por mais que tente, não há solo fértil para nenhuma semente... não para as minhas, sabe? Onde foi que perdi o fio da meada?
- Mocinho - ainda com dentes expostos entre os lábios semi-abertos, e já com um oragástico desdém no olhar -, não sei por que isso, mais uma vez.Você parace não enxergar o quanto...
- Ou foram todos os outros que perderam... - absorto na conclusão do pensamento. Agora voltando ao diálogo - Muito obrigado! Muito obrigado por não dizeres o que fica guardado aí por trás das sombrancelhas. Isso me ajuda muito. Podes me daixar só, se for o caso - agradeçerei. Se não for o caso de me dizeres o que esta pensando.
- Penso no quanto você tem prazer na autodestruição...
- Mas não é AUTOdestruição. Quem acaba comigo é quem me emprega. Pois me emprega mal.
- Penso no quanto tem prazer em que te assistam nesse estado.
- Não quero que ninguém me assis...
- Compreendo agora aquele desejo por estar doente que tinhas quando criança...
- Pois não me assista... Não, o sadismo nos consome, não é verdade? Satisfaz, algum sentimento de vez em quando, já que tudo parece tão banal e só o que é muito íntimo tem nos comovido... - soluçando umas poucas risadas - mas, e o que é realmente íntimo?!
- ...
- Quer ver o meu fim, sem ter que fazer nada. Sofrer junto a minha decadência e eximir-se de qualquer responsabilidade, é isso - assistir; afinal de contas esta também é a tua ruína... ela é nossa. Por isso o olhar de desdém, por isso... não consegue aceitar o fato - menospreza-o!

15.9.06

Modéstia (Arthur Schopenhauer)

Quem fez da modéstia uma virtude esperava que todos passassem a falar de si próprios como se fossem idiotas.

O que é a modéstia senão uma humildade hipócrita, através da qual um homem pede perdão por ter as qualidades e os méritos que os outros não têm?

9.9.06

A Perfeição (Clarice Lispector)

O que me tranqüiliza
é que tudo o que existe,
existe com uma precisão absoluta. O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete não transborda nem uma fração de milímetro além do tamanho de uma cabeça de alfinete. Tudo o que existe é de uma grande exatidão. Pena é que a maior parte do que existe com essa exatidão nos é tecnicamente invisível.
O bom é que a verdade chega a nós como um sentido secreto das coisas. Nós terminamos adivinhando, confusos, a perfeição.

26.8.06

Seus olhos, - Nunca havia visto desses. Não tão de perto - perdidos em um rosto calmo.
E o rosto é como o silêncio. Belo como silêncio. Livre de oscilações bruscas. Calmo, sereno.

Eu te amo. E temo.
Chegou em casa, apática. Deixou o carro, a sala, o corredor e sentou-se em sua cama. Sem uma brisa sequer, o ar do local refletia seu humor estagnado. Minutos depois ele chegou.

- Boa noite, querida! - contente
- Boa noite.
- Aconteceu algo.
- Nada. Estou cansada, hoje o trabalho não rendeu. Não escrevi uma linha.
- Não é isso. - afável e incrédulo, as sombrancelhas arcadas, os olhos fugidios como a procurar algo distante.
- O que é, então?
- Não sei.
- É isso: meu trabalho. Estou um pouco cansada.
- São os últimos meses. Já, já, acaba.
- Eu sei, eu sei.

Ela continua sentada na cama, imóvel. Os cotovelos apoiados nos joelhos. Ombros caídos e os olhos fitando o rapaz. Esses olhos são como duas verdes pedras translúcidas e muito profundas.
Ele encontrava-se escorado no batente da porta. Aproximou-se sorridente. A moça recusou. Nada tirava dela o ar prostrado.

15.8.06

Anton Tchekhov

Será preciso trabalhar e continuar vivendo. Mas tudo parece labirinto. Não podia ser esse meu destino

Não sobra nenhuma esperança. Tenho dores. Preciso de remédios. É lúgubre, mas preciso de morfina para minha alma.

O que se pode fazer? Temos que viver. Temos que suportar com paciência tudo que vem pelo destino e termos uma velhice sem conhecer o descanso.

Quando chegar a hora, morreremos com submissão e vamos dizer, no outro mundo, que sofremos, choramos, que a vida com a morte, que não se ilude nunca, ficou amarga demais. E deus, vai ter piedade de nós.

Merecíamos uma vida luminosa, esplêndida, contetes, felizes. E, vem tudo isso que nos cerca. Porque?

Temos que ter fé, uma fé ardente e descansaremos. Veremos o céu coberto de diamantes. É preciso buscar alegria. Temos que ver o mal de longe. E assim, todos, nos encontraremos e descansaremos.

Descansaremos.
saimos dali: eu, ela e minhas sombrancelhas.

12.8.06

sentou-se ao meu lado. Com receio na voz e em um tom choroso, declarou insatisfação:

- Você sabe que sou comprometida e que isto não esta direito...
- Bem... sei. Agora sei.Mas, e o que se faz numa situação destas? Aliás, ninguém fez muita questão de me deixar isto claro.
- Tudo andava bem antes de você aparecer. Eu não sei o que faço.
- Lá em casa as coisas não andavam tão bem assim. Portanto digo que só nos resta uma alternativa...
- Qual?
- Larga do cara e fica comigo.

encolheu os ombros, sorriu e olhou-me nos olhos. Irônica, levantou aflitas mãos de dedos crispados. Parecia querer arrancar algo de sí, algo além da pele. Eu vislumbrava claramente a contradição lhe corroendo.

- Se chegamos a este ponto, você não poderia estar tão certa de tudo.
- Não estou me sentido bem. Espere um pouco. Desde o dia em que nos vimos...

a situação era tensa porém me divertia com aquilo tudo. Tenho faro para esses casos complicados. Brinco afirmando que os encontro a cada esquina. E, afinal, só me restava gozar da sina.

- Você pretende mudar-se daqui logo?
- Não.
- Vai criar raízes na cidade?
- Não sei. Fico até, ao menos, o fim do ano que vem.
- Dois anos.
- ...
- Ficarei fora nos primeiros seis meses do ano.
- (risos) Eu vou com você - eu, curvado e com a cabeça entre as mãos.
- Isso não esta certo, não esta. Não me sinto bem.

e aproximou-se de mim segurando meu rosto. Me beijou. Me beijou ardentemente e não consegui mais enxergar a culpa antes nítida em seus gestos e em sua feição.

- É bom. E isso ainda piora tudo. Senti saudades suas, sabia. Sonhei com você. Isso não deveria acontecer, não é direito que tudo mude assim tão bruscamente. - com as mesmas mãos aflitas e crispadas balançando ao ar - Tudo andava tão certo Bernardo, tudo tão no lugar...
- Já lhe disse o que penso. - franco e sorridente, ainda zombando de minha infelicidade, com os cotovelos repousando por sobre o encosto do banco - Se tudo fosse assim tão certo quanto você se esforça em dizer, não estariamos aqui.
- Mas não estou em meu estado normal...
- Tanto quanto eu.
- Não consigo confiar nas suas palavras.
- Bem, quem não tem sido muito franca, até aqui...
- Eu sei, eu sei... é que...
- Não estou pedindo nada... Aliás, quero exclusividade,porém somente se for o caso.

o rosto continuava próximo ao meu. A ansiedade ardia naquele curto espaço. Então, como se falasse de outro alguém, mirou minha boca e:

- Acredito nos seus olhos. Suas sombrancelhas é que me põem medo.- os olhos me parecem honestos, e as palavras. Essas sombrancelhas não. São sombrancelhas de um digníssimo malandro, cafajeste... pensava ela.
- Pois, acredite nos olhos e aproveite as sombrancelhas...

30.7.06

faz um tempo que não escrevo nada. o que será que não está acontecendo?

16.7.06

mais um. menos um

17.6.06

mais um mês...
a vida impiedosamente abraçada aos ponteiros do relógio
caminha ou é mera impressão?

13.5.06

A Queda (Mário de Sá-Carneiro)

E eu que sou o rei de toda esta incoerência,
Eu próprio turbilhão, anseio por fixá-la
E giro até partir... mas tudo me resvala
Em bruma e sonolência.

Não me pude vencer, mas posso me esmagar,
- vencer às vezes é o mesmo que tombar -
E como inda sou luz, num grande retrocesso,
Em raivas ideais, ascendo até o fim:
Olho do alto o gelo, ao gelo me arremesso...

Tombei....
E fico só esmagado por mim!...

9.5.06

e tudo, toda essa liberdade e leveza concedidas, me levam a fazer coisas das quais muito me agrado.
...

chega de gotejar-te com mel, senhorita.
perdida em pensamentos, é assim que te vejo.
dos olhos e das grossas madeichas cor de mel, e de um rosto calmo e claro como teu próprio nome presume.
muito inseguro, fico ao teu lado e te amo assim avechado. muito inseguro, como ficam os que se deparam com a grandeza incompreensível de um astro cerrado em sí, um astro que guarda inplícito seus por ques - me explicaste isso uma noite.
fico em devaneios até perceber que não há no que pensar. a ausência de razões claras talvez me diga que certezas são só as minhas.
as únicas verdades são as que te atribuo, assim é. as únicas verdades são as que enxergo em tí.
não me dizes coisa alguma, entendo. e isso é muito bom: não me dizeres nada.
Assim, sei que tua voz soa, nítida em meus ouvidos, quando tenho nítido tudo aquilo que a mim me lego.
faz tempo
quanto tempo
não pensar é pensar em dobro
não me afobo, nem assombro
sei que estarei contigo
na hora de gozar
o segundo sereno do esporro.

4.5.06

Neto,

Esta "calça", ganhei faz tempo, mas
para mim tem 2 defeitos.
1 - ñ tem bolsos
2 - é comprida demais

Vê se te serve, tá?


Renata

3.5.06

II

(um banheiro excesivamente claro, todo em azuleijos brancos e com um pequeno espelho em frente à pia)

1-(entra no banheiro com uma toalha por sobre o ombro) você ainda esta escovando os dentes? caramba!... (pindura a toalha e observa-o)
2-(cospindo o creme dental e analizando os dentes no espelho) pois é.
1- nossa! tô precisando urgente de um banho...
2-(ainda nos dentes) eu não acho que você precise de banho, gosto do seu cheiro.
1-(para a platéia - nitidamente irritada) quanta sensibilidade. o cara nem olha na minha cara pra dizer um negócio desses e espera me convencer.
2-(ainda nos dentes) sabe, cheiro é um negócio importante. o cheiro com certeza expressa muito o caráter do indivíduo e talvez seja mesmo parte dele; do caráter. e ainda mais agora... (muito desanimado)é difícil acostumar com a minha condição...
2- (olhando para ela com a sinceridade do fundo dos olhos) por um lado parece-me que você se banhando seria como eu perdendo-lhe um pouco mais para a terra, como eu mais uma vez não conseguindo dividí-la com as carências dos outros, sabe?(como quem rememora, mas com olhar profundo, fugidio e severamente interrogativo) dessas coisas de ter que tomar banho pra não mostrar para os outros o cheiro da pele...; e o cheiro? não equipara-se ao sentir a concistência da carne, ao sabor do corpo, ao prazer sexual e intelectual, ou simplesmente à beleza plástica... ou simplesmente à beleza dos sons...?(um contido rosto alegre e esperançoso) eu não gostaria de perder isso de você; não agora.
2- você não sabe como têm sido um saco esses último tempos. tenho andado muito sozinho. depois do que aconteceu, por mais que eu esteja rodeado por pessoas, todas me são estranhas, me sinto deslocado. há algo faltando em cada coisa.
2- muito diferente foi essa noite. juro que se tivesse algum peso sobre essa decisão diria para que você não se banhasse. o seu cheiro é bom.
2- (se animando, mas sem tanta convicção) mas logo falando convenço-me, também, de que a privação de não estar presente a uma bela cena como essa me dói bastante; putz, vai ser muito bom estar aqui com você, durante o seu banho.
1- que tal se fizer-mos um trato? durante nossos encontros só tomamos banho sem sabão ou qualquer outro desses produtos, o que você acha? a mim parece muito legal - também acho muito bom os cheiros estarem mais presentes.
2- que bom. adorei.
1- legal. tá combinado.
2- ok

ele volta a escovar os dentes enquanto ela arruma suas coisas por cima da tampa da privada. ela termina e ele não, o que a deixa pensativa. e ela retoma o assunto receosa

1- agora... eu estou aqui enrolando porque não vou tomar banho com você presente no banheiro.
2-(timidamente espantado) mas, por que?
1-(num misto de pasmada e debochada) imagina! você tá ficando louco. meu irmão esta aí, iria ser uma situação constrangedora para mim
2- mas, por que?

desencana, todo mundo sabe
não. sera?

2.5.06

1- eu tomaria um belo de um chope, agora, e fumaria um cigarro.
2- chope eu desço para comprar, mas nada de cigarro, tô precisando parar...
1-(com voz zombeteira) ah...! você fumou a noite inteira, lá no bar. Em um dia, mais do que eu fumo na semana...ah, sai fóra.
2-(cabisbaixo) é verdade, né? eu falo isso desde que comecei, sabia?... mas beleza, um dia eu paro... por repetição, sabe como é? fico repetindo isso pra mim mesmo todo dia, quem sabe autosugestão resolva o caso.
2-(levanta a cabeça e vira-se para ela) está bem, eu vou lá comprar o aditivo e a chaminé...! - (vagarosamente vira-se para o público, com um olhar baixo e distante) - nesse momento eu poderia beijá-la e abraçá-la infinitas vezes, dar um tempo para os nossos corpos conversarem; isso seria bom... deixa para depois(e tenciona se levantar)...
1-(segura-o, e diz sorrindo) ei... calma. tá com pressa?... não dá pra ter pressa na primeira, a gente tem algumas horas ainda. eu não tenho compromissos amanhã, você tem?... no que você trabalha?... Se não tiver, bem que dava pra fazer um almoço, compramos algumas coisas no mercado daqui a pouco. e depois durmimos umas horinhas e você vai, que tal?
2- (neutro e vai se animando com a possibilidade) pode ser uma boa idéia, eu sei uma receita legal com abobrinha, vai molho branco e humm... nossa, posso sentir o cheiro, você vai gostar. e é barata!
1- (alegre e com uma risada pra dentro) ha, haa... por vezes acho que eu vivo demais de poesia, me cansa... mas eu não consigo... imagina: você cozinhando para mim é muito bonito, é como o sol que alimenta a planta, ou o homem semeando a terra. é como uma caricia, saber acariciar no momento certo, perceber o tempo, cumprir a tarefa que o tempo exije... gosto de homens que sabem cozinhar.
2- (brincalhão) eu cozinho para você e depois...
1- ha ha ha, engraçadinho... - (levanta, séria, o olhar até ele e aos poucos se solta) - eu estou falando sério, escuta quando eu falo de mim - eu não preciso só de comida para ser semeada e desabrochar em flor, pra isso são necessárias algunas coisitas a mais.
2- (riso de conveniência com a garganta) hã hãã... é vero... - (agora atônito e novamente perdido em pensamentos, com a platéia) - e agora? será necessário dizer alguma coisa, alguma coisa inteligente e encantadora? mas só tenho vontade de ouvir a voz dela me falando das suas coisas e de grudar na sua pele... tem um poeta que diz alguma coisa parecida com "o silêncio são as obras completas do poeta que nada deixou escrito", deve ser o meu caso, talvez eu faça poesia com gestos. mas de nada adianta se ela não entender os gestos. tenho de convir que seria demais exigir que compreendesse meu silêncio de contemplação conhecendo-me ela a tão pouco tempo... as vezes, o silêncio fica muito próximo da dissimulação, não é verdade? me sinto obrigado a falar algo de muito relevante, mas qual?!
2-(terno) é impressionante o como você é bonita, sabia? fico impressionado mesmo...
1-(ela responde com um sorriso encabulado)
2-(com a voz mansa e aveludada) e que tal se dormissemos agora, hm?...
1-(a meia-voz) estava pensando na mesma coisa...
2- levantamos à tarde e fazemos uma comidinha gostosa... depois cada um pro seu canto, buáá
1- ai, como ele é carente
2- he he... ok, combinado. então vou escovar os dentes (se levantando da cama)
1- esta bem... daqui a pouco vou tomar banho... (ele já saia do quarto)

29.4.06

As luzes se apagaram e sutilmente a música invadiu o breu. Me preocupava com o que esperavam de nós, e daí é que me atinei para o detalhe de que ruídos indefinidos soavam ao fundo do palco; tentei distingui-los, foi esse meu único pensamento durante boa parte do tempo. Após algumas dezenas de minutos entendi que os ruídos - já não tão indefinidos assim - não eram animados por uma única pessoa - intuí que alguns indivíduos, aos poucos, levantavam-se e caminhavam até onde os sons nasciam. Exatamente, eu também, em algum momento, teria a oportunidade de gerar tais sons; até então minha atenção estava completamente voltada para o som, para a percepção do som, o objetivo clraramente seria perceber e distingui-los.
As músicas de fundo marcavam o tempo. Após algumas delas agradavelmente familiares, sua sequência começou a me incomodar. Elas começavam a repetir.
Fui chamado à fonte dos ruídos. Me foi explicado que deveria sentir os objetos posicionados por sobre as bordas de uma mesa.
Não escutava mais a música.
O primeiro objeto em minhas mãos foram um punhado de pedras de rio. Me lembraram Maciambu.
O segundo objeto de que me lembro foram umas cascas de arvore, as quais também me lembraram muito Maciambú.
Depois lembro-me de uma peça de pelo de algum animal a qual associei, pela leveza do tato e do cheiro, a uns pelegos de ovelha que tinha em casa durante a infância.
O resto foram cheiros dos que, como eu, alí estavam saboreando os sentidos naquela mesa.

22.4.06

chorei sozinho assistindo a uma sessão de seicho-no-ie na televisão, hoje pela manhã, ao deitar na cama, depois de trabalhar a madrugada inteira. Não sei porque chorava; não sei mais porque choro, talvez sejam o frio e o calor, talvez a fome ou o cansaço ou a falta de carne que me esfacele no ventre. Tenho fome de carne -eu também, guilherme - e quero também que ela me engula, sem respeito. Cansei de ser respeitado. O mortos respeitam, os vivos caminham pisando por onde passam.

21.4.06

Para não deixar que a idéia escape. Digo que era um casal de namorados que se descobriram e perderam em uma mesma noite, meia noite. Tem a conversa no quarto dela, uma explanação feminina sobre a mulher e uma exaltação masculina dessa imagem narrada. Depois o banheiro, ele escova os dentes, ela entra como quem vai tomar banho, ele escova os dentes, ela começa a despir-se com má vontade, ele escova os dentes sem percerber nada, ela despindo-se espera dele que acabe logo a escovação e saia do banheiro, ele continua, ela quase nua, ele dá uma olhadela mais acentuada, ela se cobre e solicita que o rapaz saia, ele sai contrariado com não poder compartilhar da beleza feminina naquele momento. O casal foi de esbarrão, e nem bem se conheceram durante uma conversa de pouco mais de duas horas tornaram-se íntimos; o rapaz esperava muito daquela relação. No banheiro, ela divaga sobre a postura invasora do rapaz. No quarto, ele "escuta" os pensamentos dela e sofre por entender o que ela fala e sente. No quarto, ela entra cheirosa e muito atraente e sem mais o tesão que tinha por ele, ele esbugalhado num cantículo da cama "chorando" só.

18.4.06

Flashbacks - início de março de 06
"Um dia declararei meu amor por ela. Antes desse dia é preciso reunir forças e portanto medirei pesos em linhas. Colocarei em linha a questão para tê-la mais clara, e saber como melhor proceder. Não com pretensão de dominar a circunstância onde ela, a situação, a questão, se desenrolar, mas simplesmente com o intuito de acostumar o corpo ao ambiente por meio de suposições de "situações fictícias porém análogas" (Análogo adj. {gr. análogos}. 2.(...)biol. Diz-se dos orgãos de diferentes espécies animais que apresentam função biológica similar, e origem e estruturas diferentes.). Para na hora em que precisar estarei preparado.
Parece a mim que foi como se tivesses fechado os olhos por alguns segundos, e esses curtos segundos tenham para ti durado anos. Longos anos de tua vida mas que por meros segundos se acabam. Tens agora meses para refletir sobre todos e cada um deles e recompô-los em suas devidas ordens, agora que é hora de te espreguiçares e levantares como quem acorda de mil noites dormidas em uma mesma; mil tristezas e mil sonhos, mil alegrias, sobresaltos e reflexões infindas e as mais diversas, dos mais diversos tipos; pra tu veres - só agora é que os olhos desinxam e as vistas deixam de embaçar-se e a ti tudo se assemelha mais real.
Mas foram mesmo apenas segundos, para todos aqueles ao teu redor. Muitos destes não se permitiram ceder ao peso das próprias pálpebras, muitos outros sequer sentiram peso algum e alguns devem estar ainda de olhos fechados, nesses segundos que passas refletindo.
Acho que nunca te disse isso nessas palavras:
- Tu és linda quando acordas."

17.4.06

Pois só podia dar nisso. Noite passada. Eu deitado ao lado de uma bela mulher, já com o corpo exaurido de forças após horas fazendo o que tenho por bem fazer quando estou à noite acompanhado de uma bela mulher, e lá pelas tantas pegamos no sono; nem cheguei a ter quinze minutos de um cochilo leve, acordei assustado, com a fixa idéia de que tinha que ligar para as companias policiais da região e preocupado também com não estar acompanhando via rádio o andamento dos trabalhos dos orgãos de defesa da cidade. Nunca me havia acontecido isso antes; estava duplamente assustado e preocupado: com o trabalho e com agora preocupar-me com ele enquanto durmo.
Mais uma vez o rádio me pregando peças. Sentindo-me refém de um desses derivados da invenção de Graham Bell - desse santo homem porém deveras incoveniente em certos momentos - penso que um dia terei minha desforra contra o aparelho. Ainda não sei bem qual será essa desforra - atos criminosos não passam por minha cabeça - entretanto não há dúvidas de que ela virá.
Fiquei um tanto incomodado com o acontecimento, mas não quis comentar nada com a companheira, que me parecia entrando em um gostoso sono, e logo adormeci novamente.
Na manhã seguinte foi ela quem me acordou, perguntando-me se eu não iria ao compromisso que tinha no centro da cidade. Levantei-me, vesti as calças e a blusa, peguei alguns pertences meus espalhados pelo quarto e beijei-a uma última vez. Já não lembrava mais do rádio nem mesmo pensava no trabalho. Saí do quarto, no corredor cumprimentei a simpática mãe da moça e que já estava acordada e perambulando pela casa, preocupado com seus afazeres, e tomei o ônibus.

9.4.06

blá, blá, blá...


fome e sono e este maldito barulho de rádio...
É ainda meia-noite. Tenho fome, muita fome, e já não aguento mais este maldito rádio zunindo em meu ouvido, este aparelho infernal ao qual estou preso durante as vinte e quatro horas de sábado e que não para de me falar coisas sobre mortos, feridos e acidentados por um segundo, num ruído desritimado e ininterrupto. E é ainda meia-noite - ficarei por aqui até meio-dia. Afinal, eu me pergunto: porque não paro de reclamar e peço logo, pelo telefone, algo para comer? Ao menos assim parte do sofrimento abranda. E eu mesmo, prontamente, respondo: lógico! não peço pois sumiram com a maldita lista telefônica deste maldito lugar! Que ótimo!
Só eu trabalho por aqui, no fim-de-semana. Fico só, com o prédio todo a meu dispor. Isso aqui fica jogado às traças - tudo só pra mim.
Todo o prédio e nenhuma lista telefônica!
Todo o prédio e toda a fome que eu puder.

4.4.06

exorto as dores de mim em sí mesmas
agora que tenho o conforto de teu colo
são poucas as horas de sono, é verdade
mas como medir o descanso quando recostado à sombra de teu afago

sabe-se que nada é verdade
bem como tudo pode vir a ser
a única certeza é a carne
pulsando sob a pele
ah! e como pulsa minha carne após uma curta noite curtida em tua beleza!

Após a noite fugaz que passei ao teu lado, somam-se já dias sem uma longa noite de sono. Encontro-me no centro da cidade e sem rodeios paro num desses bares asiáticos e bebo uma cerveja e fumo um cigarro - são dias já também sem fumar um cigarro.
Bebi a cerveja e fumei o cigarro. E ao fazê-lo penso no amplo horizonte que como há muito não fazia abre-se à minha frente, e penso calmamente como os calejados marinheiros que se dão o tempo de sentir o vento e as vagas da tormenta calmamente, aproveitando as forças em seu favor.

Faço isso sentado ao banco da praça. Tudo isso observando os incertos passos dos transeuntes a minha frente; esperando um com o rumo certo para que o possam seguir - e para que eu também o possa.

26.3.06

Um homem com uma dor (p. leminski)

Um homem com uma dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
como se chegando atrasado
andasse mais adiante
Um indivíduo num quarto escuro, chorando amargamente o que acaba de fazer. É tamanha a angústia sua, que, suas lágrimas secam antes mesmo de rolarem ao rosto, e, assim, os olhos tornan-se cada vez mais salgados.
O rapaz não queria ter cometido tal atrocidade, ele REALMENTE não queria; mesmo assim o fez - ele matou o outro, esganou-o deliciando-se com cada milímetro de carne, feita em pasta, envolvida por seus delicados dedos e unhas e mãos e braços e tudo mais. Não era necessário, sabia-o muito bem e tinha isso muito claro para ele próprio, não queria, não podia fazer aquilo; não podia!!! porém algo lhe fugira sorrateiramente ao controle, algo muito obscuro a encobrir a clareza tomara-lhe conta da alma.
Matou a sangue frio, sem pensar, sem pesar e sem remorso, esmagando a carne alheia até o ponto de cortar a sua própria com as unhas. Esmagava! Batia! Gritava! Como se lhe houvessem retirado o cérebro e agisse tal qual um peixe, apenas por dolorosos espasmos.

25.3.06

- volto... quem sabe, um dia eu volto. - disse eu - Gostaria muito.

21.1.06

Adeus às Armas (E. Hemingway)

"(...) Aos que trazem muita coragem neste mundo, o mundo quebra a cada um deles e eles ficam mais fortes nos lugares quebrados. Mas aos que não se deixam quebrar, o mundo mata-os. Mata os muito bons, os muito meigos, os muito bravos - imparcialmente. Se não pertenceis a nenhuma destas categorias, morrereis da mesma maneira, mas não haverá pressa nenhuma em matar-vos.(...)"

livro IV, capítulo 34, p.216

18.1.06

Fio da meada. Perdi o fio da meada. Não vou mais ao mercado público nem vejo as atendentes da barraquinha; pouco me importam, neste momento, suas características. Da moça de quem deixei de falar sobre, tudo que me resta dizer é que é loira e muito nova, e me pareceu simpática à distância. Mas não me apetece saber mais detalhes dela e da outra mulherzinha e do homem carrancudo da barraquinha do mercado, nem mesmo falar deles ou de qualquer singularidade que possam ter. Hoje, são todos iguais diante de meus olhos, singulares são outros, hoje.
Meu final de semana foi horrível e tenho pensado muito nele durante a semana. Sem fugir à regra as desavenças familiares ditaram o clima em minha casa. Dessa vez foi minha mãe quem deu vazão às suas frustrações, discutindo aos berros com meu avô em plena sala de estar. Como uma criança chorando as faltas de cuidado, ela chorava e gritava fino frente a um pai nada razoável e nutrido de uma postura mais infantil e birrenta que a da filha.
A cena não ficou rodando em meus pensamentos, momentos com esta mesma tonalidade são frequentes na vizinhança; o que me intrigou depois disso tudo, e durante tanto tempo, foi o fato de poucos meses atrás tais ocorrências me chocarem mais e ao mesmo tempo que me encontrava mais fortalecido para encará-las - ao passo que hoje, já não me chamam a atenção sequer sendo que me pegam desprovido de reação racional. E essa merda toda me lembrou de uma outra família, a MINHA família, a que eu constituí e que também era insana, mas era minha e em muitos momentos foi a melhor que já possuí pois os problemas eram meus problemas e estavam à merce das resoluções que eu os desse. "E como eram bons aqueles tempos" fiquei pensando durante uma semana inteira; lembrei de alguns momentos, e deles como os melhores de que posso recordar, os mais felizes e inspiradores. Isso brotado de um péssimo fim de semana em família.
Como dizia o outro "não é possível amar e ser feliz - e ser razoável". Não poderia me deparar com a frase em melhor momento. Ao lembrar da mulher que foi minha mulher, da casa que foi minha casa, e das viagens que fizemos e dos parentes dela que eram meus também, lembrei que acabara de perder o bonde de tudo isso há poucos dias. O bonde com mesmas feições, belo e saudoso e que perdera a marca do tempo, a ferrugem... "Por que fiz isso" fico me perguntando agora. "As coisas mais próximas são aquelas que muitas vezes não conseguimos enxergar", não é verdade? Hein?!
Só me resta, agora que o percebi, correr, correr muito!

13.1.06

A Multiplicidade do Real (paulo leminski)

Que existe mais, senão afirmar a multiplicidade do real?

A igual probabilidade dos eventos impossíveis?

A eterna troca de tudo em tudo?

A única realidade absoluta?

Seres se traduzem.

Tudo pode ser metáfora de alguma outra coisa ou de coisa alguma.

Tudo irremediavelmente metamorfose!

12.1.06

Duas figuras, essas atendentes da barraquinha. A primeira, a mais velha, tem algo próximo a trinta e cinco anos de idade. Vive com um sorriso desajeitado no rosto. Seus cabelos são negros e cacheados, caídos até os ombros; percebo isso pois me enerva penssar que eles deveriam estar presos e não soltos, espalhando bactérias por toda a comida, fios e mais fios caindo nos copos de liquidificador, ou na estufa de salgados, ou ainda no óleo de fritar pastéis. Não que me interesse muito o fato, apesar de me adoentar um pouco as idéias, apenas o cito pois me lembra dos cabelos da tal atendentezinha mais velha.
Bem, além dos cabelos e de sua baixa estatura - a mulherzinha mede pouco mais de um metro e meio -, ela não é gorda; não é muito magra nem muito gorda, não tem a carne rígida de uma jovem, é certo, entretanto não desancou a embarrigar feito uma velha decrépita sem um pingo de amor próprio - não, a mulher não é barriguda, de forma alguma.
Mas o principal vem agora, o que definitivamente chama a atenção na pequena mulherzinha da barraca de sucos: seu rosto; um rosto enrugado em sorriso. Pequenos olhos castanhos, arcados e fechadinhos como duas minguantes separadas por um espelho, dão a impressão de esconderem-se de algo por detrás das palpebras. Me parece que a mulherzinha se esconde toda atrás daquelas pálpebras, com medo. Os olhos estão sempre a sorrir, bem como a boca. Mas, é aí o que instiga a curiosidade: o movimento disparatado dos três - olhos e boca; há um mesmo rosto sorrindo dois sorrisos. Enquanto os olhos sorriem fechando-se, arndo-se num movimento vertical, seus lábios, lábios escuros e aparentando ainda guardarem da juventude certa maciez, mas que, em conformidade com o corpo, não exibem muitos exageros para mais ou para menos em quantidade de carnes, seus lábios ao sorrirem brotam como uma rosa, da face, num movimento diverso do dos olhos, um movimento preponderantemente horizontal. Uma total falta de harmonia toma conta daquela figura, um elegante desarranjo entre olhos e boca que acaba por enrugar de maneira estranhíssima toda a extensão do rosto. Isso me chama muito a atenção, é, realmente um charme dessa moça. Ah, eu me delito com essa anormalidade; exala simpatia um mulherzinha que de tanto medo se esconde atrás de um sorriso desengonçado que retorce, decerto pelo constrangimento, tudo o mais consigo.
Esqueci de mencionar que ela mostra os dentes enquanto fala. Não, não de um jeito qualquer - acredito que qualquer um mostra os seus quando fala - ela não, ela apronta um biquinho ao falar qualquer coisa e sempre mostra os dentes - pensando bem, talvez seja o mesmo bico do sorriso, a mesma rosa desabrochada no meio do rosto durante todo o tempo, mesmo ao sorrir; talvez seja esse o tempero cômico da figura - os dentes e seu aparelho de correção ortodôntica a mostra - ha ha ha, são a felicidade do meu lanche as hilárias caretas da simpática mulherzinha.


Hoje estive lá, novamente. Por volta das três da tarde, sem almoço na barriga, desci até o mercado público e tomei meu suco de laranja e meus pastéis de carne. Para minha surpresa o homem não estava desta vez, pude ficar a sós com as moças. Não sei o nome dele, do homem, todos no lugar limitam-se aos "faça isso" ou "aquele rapaz pediu isso e isso", não se tratam pelo nome... Pouco me importa.

11.1.06

Acordei. Mais de dez horas da manhã. O sol arde pra burro por aqui e ardem também as coisas todas mais à essa hora do dia. Levantei suando em bicas e cheirando mal, com o cheiro de fumante pela manhã quando transpira muito durante a noite e o suor seca nos lençois. Não tomei banho nem ao menos escovei os dentes, estava com fome e rastejei até a cozinha a procura de um resto de pão do café da manhã. Tomei um copo de leite e voltei rapidamente para o quarto, aquele calor e a luminosidade excessiva não fazem bem quando se acaba de acordar. Voltei para o escuro do quarto.
Após alguns longos minutos peguei todas as coisas e fui até o banheiro que, ao contrário da cozinha, para alcançá-lo não é preciso sair da casa nem tampouco encarar o sol. Fui ao banheiro, escovei os dentes e fiz aquela merda toda que se faz no quando se acorda cheirando mal.
Já eram por volta de onze horas quando saí de lá. Na cozinha nem sinal de que alguém faria almoço, e isso deixa o cidadão maluco; é hora de bater a fome, onze horas da manhã, é hora do estomago lançar os primeiros lamúrios do dia e qualquer um ficaria em estado alterado se, em sua casa, uma empregada paga para isso, para matar a fome das pessoas, e ela não o fizesse - afinal, ela só precisa esquentar a comida, somente esquentar, pois esta tudo na geladeira e além do mais ela é paga para isso. Mas são já onze e meia, quase meio-dia, e nada de sinal de almoço.
Arrumo minhas coisas dentro do quarto ainda escuro, saio para o quintal e subo na bicicleta, aliás, pego um pão com margarina na cozinha, subo na bicicleta e sigo para o trabalho.

Agora são duas da tarde; e a fome me enche a paciência. Pauso o trabalho e desço até o mercado público pra comer qualquer coisa. No mercado existe uma barraquinha dessas, um box, que vende sucos muito baratos. Nem tão baratos assim porém baratos. Também não é a única barraca a vender sucos, a maior parte desses estabelecimentos do mercado público da cidade vende sucos, e salgados gordurentos de todo o tipo. A questão é que esse lugarzinho que vou é o menos imundo deles, e vende o suco 25% a baixo do preço. Fui até o mercado pra comer qualquer coisa e tomar um suco. Escolhi um suco de laranja e dois pastéis sequinhos de carne; eu sempre tomo suco de laranja pois ouvi, não lembro bem aonde, que falta de vitamina C causa escorbuto e desde então tenho sentido umas dores e inchações estranhas na gengiva. Eu sempre escolho suco de laranja quando tenho de tomar um suco. Comi os patéis e bebi o suco, o suco não tão mal e os pastéis não tão sequinhos. É possível suportar até as cinco horas da tarde com isso na barriga.
Porém, nessa banquinha do mercado há também algo além das outras coisas ordinárias, algo mais que me atrai até lá: suas duas atendentes; existe um homem também no lugar, atendendo, um tipo sério e de poucas palavras e que nunca sai do recinto; recebe o dinheiro, anota os pedidos, mas fala muito pouco e vai sempre direto ao ponto, sempre à cara fechada - meus sucos de laranja ele espreme com uma agilidade impressionante usando aqueles espremedores elétricos; com as duas mãos ele corta as laranjas e com uma apenas ele espreme a fruta, põe no liquidificador o sumo, mistura ao gelo e serve em copo americano largo. Mas esse cara não me interessa muito, o que me põe curioso são as duas atendentes...

8.1.06

...

aguardando servidor...