29.4.06

As luzes se apagaram e sutilmente a música invadiu o breu. Me preocupava com o que esperavam de nós, e daí é que me atinei para o detalhe de que ruídos indefinidos soavam ao fundo do palco; tentei distingui-los, foi esse meu único pensamento durante boa parte do tempo. Após algumas dezenas de minutos entendi que os ruídos - já não tão indefinidos assim - não eram animados por uma única pessoa - intuí que alguns indivíduos, aos poucos, levantavam-se e caminhavam até onde os sons nasciam. Exatamente, eu também, em algum momento, teria a oportunidade de gerar tais sons; até então minha atenção estava completamente voltada para o som, para a percepção do som, o objetivo clraramente seria perceber e distingui-los.
As músicas de fundo marcavam o tempo. Após algumas delas agradavelmente familiares, sua sequência começou a me incomodar. Elas começavam a repetir.
Fui chamado à fonte dos ruídos. Me foi explicado que deveria sentir os objetos posicionados por sobre as bordas de uma mesa.
Não escutava mais a música.
O primeiro objeto em minhas mãos foram um punhado de pedras de rio. Me lembraram Maciambu.
O segundo objeto de que me lembro foram umas cascas de arvore, as quais também me lembraram muito Maciambú.
Depois lembro-me de uma peça de pelo de algum animal a qual associei, pela leveza do tato e do cheiro, a uns pelegos de ovelha que tinha em casa durante a infância.
O resto foram cheiros dos que, como eu, alí estavam saboreando os sentidos naquela mesa.

22.4.06

chorei sozinho assistindo a uma sessão de seicho-no-ie na televisão, hoje pela manhã, ao deitar na cama, depois de trabalhar a madrugada inteira. Não sei porque chorava; não sei mais porque choro, talvez sejam o frio e o calor, talvez a fome ou o cansaço ou a falta de carne que me esfacele no ventre. Tenho fome de carne -eu também, guilherme - e quero também que ela me engula, sem respeito. Cansei de ser respeitado. O mortos respeitam, os vivos caminham pisando por onde passam.

21.4.06

Para não deixar que a idéia escape. Digo que era um casal de namorados que se descobriram e perderam em uma mesma noite, meia noite. Tem a conversa no quarto dela, uma explanação feminina sobre a mulher e uma exaltação masculina dessa imagem narrada. Depois o banheiro, ele escova os dentes, ela entra como quem vai tomar banho, ele escova os dentes, ela começa a despir-se com má vontade, ele escova os dentes sem percerber nada, ela despindo-se espera dele que acabe logo a escovação e saia do banheiro, ele continua, ela quase nua, ele dá uma olhadela mais acentuada, ela se cobre e solicita que o rapaz saia, ele sai contrariado com não poder compartilhar da beleza feminina naquele momento. O casal foi de esbarrão, e nem bem se conheceram durante uma conversa de pouco mais de duas horas tornaram-se íntimos; o rapaz esperava muito daquela relação. No banheiro, ela divaga sobre a postura invasora do rapaz. No quarto, ele "escuta" os pensamentos dela e sofre por entender o que ela fala e sente. No quarto, ela entra cheirosa e muito atraente e sem mais o tesão que tinha por ele, ele esbugalhado num cantículo da cama "chorando" só.

18.4.06

Flashbacks - início de março de 06
"Um dia declararei meu amor por ela. Antes desse dia é preciso reunir forças e portanto medirei pesos em linhas. Colocarei em linha a questão para tê-la mais clara, e saber como melhor proceder. Não com pretensão de dominar a circunstância onde ela, a situação, a questão, se desenrolar, mas simplesmente com o intuito de acostumar o corpo ao ambiente por meio de suposições de "situações fictícias porém análogas" (Análogo adj. {gr. análogos}. 2.(...)biol. Diz-se dos orgãos de diferentes espécies animais que apresentam função biológica similar, e origem e estruturas diferentes.). Para na hora em que precisar estarei preparado.
Parece a mim que foi como se tivesses fechado os olhos por alguns segundos, e esses curtos segundos tenham para ti durado anos. Longos anos de tua vida mas que por meros segundos se acabam. Tens agora meses para refletir sobre todos e cada um deles e recompô-los em suas devidas ordens, agora que é hora de te espreguiçares e levantares como quem acorda de mil noites dormidas em uma mesma; mil tristezas e mil sonhos, mil alegrias, sobresaltos e reflexões infindas e as mais diversas, dos mais diversos tipos; pra tu veres - só agora é que os olhos desinxam e as vistas deixam de embaçar-se e a ti tudo se assemelha mais real.
Mas foram mesmo apenas segundos, para todos aqueles ao teu redor. Muitos destes não se permitiram ceder ao peso das próprias pálpebras, muitos outros sequer sentiram peso algum e alguns devem estar ainda de olhos fechados, nesses segundos que passas refletindo.
Acho que nunca te disse isso nessas palavras:
- Tu és linda quando acordas."

17.4.06

Pois só podia dar nisso. Noite passada. Eu deitado ao lado de uma bela mulher, já com o corpo exaurido de forças após horas fazendo o que tenho por bem fazer quando estou à noite acompanhado de uma bela mulher, e lá pelas tantas pegamos no sono; nem cheguei a ter quinze minutos de um cochilo leve, acordei assustado, com a fixa idéia de que tinha que ligar para as companias policiais da região e preocupado também com não estar acompanhando via rádio o andamento dos trabalhos dos orgãos de defesa da cidade. Nunca me havia acontecido isso antes; estava duplamente assustado e preocupado: com o trabalho e com agora preocupar-me com ele enquanto durmo.
Mais uma vez o rádio me pregando peças. Sentindo-me refém de um desses derivados da invenção de Graham Bell - desse santo homem porém deveras incoveniente em certos momentos - penso que um dia terei minha desforra contra o aparelho. Ainda não sei bem qual será essa desforra - atos criminosos não passam por minha cabeça - entretanto não há dúvidas de que ela virá.
Fiquei um tanto incomodado com o acontecimento, mas não quis comentar nada com a companheira, que me parecia entrando em um gostoso sono, e logo adormeci novamente.
Na manhã seguinte foi ela quem me acordou, perguntando-me se eu não iria ao compromisso que tinha no centro da cidade. Levantei-me, vesti as calças e a blusa, peguei alguns pertences meus espalhados pelo quarto e beijei-a uma última vez. Já não lembrava mais do rádio nem mesmo pensava no trabalho. Saí do quarto, no corredor cumprimentei a simpática mãe da moça e que já estava acordada e perambulando pela casa, preocupado com seus afazeres, e tomei o ônibus.

9.4.06

blá, blá, blá...


fome e sono e este maldito barulho de rádio...
É ainda meia-noite. Tenho fome, muita fome, e já não aguento mais este maldito rádio zunindo em meu ouvido, este aparelho infernal ao qual estou preso durante as vinte e quatro horas de sábado e que não para de me falar coisas sobre mortos, feridos e acidentados por um segundo, num ruído desritimado e ininterrupto. E é ainda meia-noite - ficarei por aqui até meio-dia. Afinal, eu me pergunto: porque não paro de reclamar e peço logo, pelo telefone, algo para comer? Ao menos assim parte do sofrimento abranda. E eu mesmo, prontamente, respondo: lógico! não peço pois sumiram com a maldita lista telefônica deste maldito lugar! Que ótimo!
Só eu trabalho por aqui, no fim-de-semana. Fico só, com o prédio todo a meu dispor. Isso aqui fica jogado às traças - tudo só pra mim.
Todo o prédio e nenhuma lista telefônica!
Todo o prédio e toda a fome que eu puder.

4.4.06

exorto as dores de mim em sí mesmas
agora que tenho o conforto de teu colo
são poucas as horas de sono, é verdade
mas como medir o descanso quando recostado à sombra de teu afago

sabe-se que nada é verdade
bem como tudo pode vir a ser
a única certeza é a carne
pulsando sob a pele
ah! e como pulsa minha carne após uma curta noite curtida em tua beleza!

Após a noite fugaz que passei ao teu lado, somam-se já dias sem uma longa noite de sono. Encontro-me no centro da cidade e sem rodeios paro num desses bares asiáticos e bebo uma cerveja e fumo um cigarro - são dias já também sem fumar um cigarro.
Bebi a cerveja e fumei o cigarro. E ao fazê-lo penso no amplo horizonte que como há muito não fazia abre-se à minha frente, e penso calmamente como os calejados marinheiros que se dão o tempo de sentir o vento e as vagas da tormenta calmamente, aproveitando as forças em seu favor.

Faço isso sentado ao banco da praça. Tudo isso observando os incertos passos dos transeuntes a minha frente; esperando um com o rumo certo para que o possam seguir - e para que eu também o possa.