25.3.11

Bom dia pra se ter alegria.

Quem sabe um dia eu acorde com vontade de levantar da cama. Provavelmente, nesse dia, o céu estará azul, muito azul, mas o calor do sol será gentil. Crianças, bonitas e de cabelos e peles sedosos, correrão felizes pelas ruas. Os vizinhos cumprimentarão uns aos outros e as calçadas estarão limpas e o ar puro e levemente húmido arrancará comedidas lágrimas daqueles um pouco mais atentos.
Nesse dia, então, serei feliz; estou certo de que serei feliz: cagarei nas escadas da catedral e ainda vejo se me enforco na prefeitura. 07/11/08

19.11.08


Rão - 9.12.08

9.9.08

X

À merda aquela cana toda, aquele povo faminto a se espremer em um ônibus caindo aos pedaços. O almoço, frio, servido no horário do café-da-manhã de qualquer pessoa normal, à merda ele também. Era o meu quinto ou sexto dia cortando aquela cana toda. E nunca acabava.
Em um dia desses eu desmaiei; a horda de cortadores se engalfinhava em cima de mim pois alguns daquele tipo haviam morrido em pleno expediente, sem aviso prévio, por fadiga ou estresse ou qualquer dessas drogas. Assim como o meu desmaio. Naquele exato momento eu me vi cortando toda aquela cana, de um dourado enegrecido, por séculos. Naquele exato instante enchi o saco; alí caído em meio a tocos de cana, da palha queimada e das cinzas, em meio àquele lugar nojento, quarenta e tantos graus. Quarenta e tantos graus e eu enfiado em cacetadas de roupa. Porque se pode cortar a própria perna com uma lâmina daquele tamanho. E mais essa, ainda por cima. O sol desgraçado queimando meu rosto. Eu olhava para cima e via um bando de mouros. Não tenho a menor intenção de me converter ao islamismo, não tenho. "Saiam daqui!", pensei, "se não houvesse perdido meu facão ao cair, podaria algumas canelas!". Aqueles homens e mulheres desdentados, de faces enrugadas muito precocemente. Todos a empurrar uns aos outros, um rebanho suíno ávido pela carniça jogada ao chão. Vomitei. Vomitei mais uma vez, agora no pé de um deles. Propositalmente. Ele ganiu qualquer coisa que não tomei nota. Foi o primeiro a me dirigir alguma palavra. Todos os outros, imundos de terra vermelha e do carvão da fuligem, balbuciavam opiniões incompreensíveis naquele sotaque interiorano que passava a me irritar, também. Ninguém, inclusive o sortudo de botas sujas, arredava o pé dali. Encarei os da primeira fila, aqueles mais próximos. Quando meu olhar cruzou com o sol, ameacei uma nova investida de meu estômago contra as botas encardidas. Estávamos próximos do meio-dia, o sol como tudo mais alí me era insuportável. Consegui afastá-los aos poucos; a cada nova intenção de regurgito, a gente morena perdia um pouco o interesse ao mesmo tempo que passavam a expressar algum nojo por meu retrato. Notei. Me diverti por alguns minutos. Vomitei nas botas de mais dois peões daqueles. Passaram a me xingar, aqueles putos. Me xingavam e nem sequer estenderam a mão para que eu levantasse. Pus todo meu almoço nos pés daqueles famintos, daqueles porcos. Que fossem escovar os dentes e não me importunassem mais. E se estivessem com fome: alí estava meu almoço.
Aquele dia foi o primeiro de dois ou três dias antes de mandar tudo à merda. Toda aquela cana, aqueles cortadores, o ônibus, o calor, tudo às favas.

25.8.08

IX

Pouco mais de quatro da manhã, em um ônibus. Trinta ou quarenta mulatos de sol cobertos por uma grossa camada de farrapos e algumas lâminas ao chão. Bernardo, sonolento, recostava a cabeça à janela. Um peão de voz renitente e sessenta quilos, insistia em falar sobre a partida do dia anterior. Bernardo demonstrava com sarcasmo seu parco interesse pelo assunto. Ineficaz, continuou vítima dos ensejos de seu colega de banco. Os bruscos movimentos da condução mareando o resquício de vontade de socialização do garoto. E o peão insistia em falar sobre a partida de futebol e Bernardo respondendo monossilábico.
Na briga entre o sono e a pueril amizade, Bernardo chegou à imensidão dourada. Não antes havia se visto submerso em tal cor ondulante. Cada um daqueles do ônibus agarrou um facão e uma trouxa de pano encardido; desceu a breve escada do veículo até pisar a terra roxa. Bernardo seguiu o grupo até que parassem. Em poucos segundos, todos inclusive ele lutavam contra intermináveis ondas de palha.
Bernardo golpeava cada gomo da cana como a um de seus familiares. Apesar de não conhecê-los - nenhum sequer - nutria raiva descomunal por aqueles fantasmas. Descobria a raiva no impacto do ferro afiado contra a vegetação. Cortava pescoços e pernas, o bucho e a mandíbula deles caindo ao chão. E com prazer observava. Perdido em meio às folhas secas, o uníssono ensurdecedor das quarenta lâminas arrebatando pais e mães e irmãs inebriava Bernardo. Sentia-se leve; formigavam suas têmporas e língua. Flutuava submerso naquele mar ouro.
Era o primeiro dos quatro ou cinco dias que persistiria por alí. Passados trinta minutos cortando a cana, estava exausto; em um estado de semi-embriaguez. Não havia comido nada. Já eram seis horas. Seus braços, costas e a região das axilas latejavam, inchadas. Ansiava pelo almoço marcado para as nove e meia.

19.8.08

VIII

Seus olhos ardiam como dois sóis. O gosto do sangue, mais forte do que nunca, lhe subiu à boca. Doía-lhe o peito. O discreto tremor percorria o corpo. Já não era mais tão discreto. A senhora percebeu o comportamento estranho no rapaz. Parou de falar. Deixou o quarto rapidamente. Estava intimamente apavorada. Muito religiosa, sofria de um medo incontrolável em situações bruscas, lugares escuros e na companhia de homens estranhos.
Saiu do quarto deixando Bernardo sozinho. A dor no peito e o sabor de sangue ficaram. Tísico sabor, as lembraças da surra que ele e a menina levaram, no dia em que a velha se mostrara os profundos olhos à sombra do marido, completavam sua mente. O torpor alí, deitado na cama, lhe trazia os olhos da velha. A dor da surra pouco importava. Bernardo e a menina haviam apanhado com a raiva do velho. De punho aberto, as barbas brancas encrespadas esvoaçaram até a moça desvençilhar-se do locatário do quarto. Sinceramente, Bernardo não guardava rancores. Tampouco tentara reagir. O aluguel do quarto era barato. Além do mais, o velho era ligeiramente mais alto do que ele e pesava algo como cem quilos a mais do que ele. O ato coadjuvava na cabeça do rapaz. A garota, que o maldissera e suas quinhentas gerações futuras, era insignificante. Hematomas por todo o corpo de uma pequena e magra moça de seus vinte anos. Branca como a neve, sua pele transformara-se em roxo. Tanto fazia. O quanto Bernardo gastava pela comida, teto e a limpeza das roupas, compesava.