25.8.08

IX

Pouco mais de quatro da manhã, em um ônibus. Trinta ou quarenta mulatos de sol cobertos por uma grossa camada de farrapos e algumas lâminas ao chão. Bernardo, sonolento, recostava a cabeça à janela. Um peão de voz renitente e sessenta quilos, insistia em falar sobre a partida do dia anterior. Bernardo demonstrava com sarcasmo seu parco interesse pelo assunto. Ineficaz, continuou vítima dos ensejos de seu colega de banco. Os bruscos movimentos da condução mareando o resquício de vontade de socialização do garoto. E o peão insistia em falar sobre a partida de futebol e Bernardo respondendo monossilábico.
Na briga entre o sono e a pueril amizade, Bernardo chegou à imensidão dourada. Não antes havia se visto submerso em tal cor ondulante. Cada um daqueles do ônibus agarrou um facão e uma trouxa de pano encardido; desceu a breve escada do veículo até pisar a terra roxa. Bernardo seguiu o grupo até que parassem. Em poucos segundos, todos inclusive ele lutavam contra intermináveis ondas de palha.
Bernardo golpeava cada gomo da cana como a um de seus familiares. Apesar de não conhecê-los - nenhum sequer - nutria raiva descomunal por aqueles fantasmas. Descobria a raiva no impacto do ferro afiado contra a vegetação. Cortava pescoços e pernas, o bucho e a mandíbula deles caindo ao chão. E com prazer observava. Perdido em meio às folhas secas, o uníssono ensurdecedor das quarenta lâminas arrebatando pais e mães e irmãs inebriava Bernardo. Sentia-se leve; formigavam suas têmporas e língua. Flutuava submerso naquele mar ouro.
Era o primeiro dos quatro ou cinco dias que persistiria por alí. Passados trinta minutos cortando a cana, estava exausto; em um estado de semi-embriaguez. Não havia comido nada. Já eram seis horas. Seus braços, costas e a região das axilas latejavam, inchadas. Ansiava pelo almoço marcado para as nove e meia.

19.8.08

VIII

Seus olhos ardiam como dois sóis. O gosto do sangue, mais forte do que nunca, lhe subiu à boca. Doía-lhe o peito. O discreto tremor percorria o corpo. Já não era mais tão discreto. A senhora percebeu o comportamento estranho no rapaz. Parou de falar. Deixou o quarto rapidamente. Estava intimamente apavorada. Muito religiosa, sofria de um medo incontrolável em situações bruscas, lugares escuros e na companhia de homens estranhos.
Saiu do quarto deixando Bernardo sozinho. A dor no peito e o sabor de sangue ficaram. Tísico sabor, as lembraças da surra que ele e a menina levaram, no dia em que a velha se mostrara os profundos olhos à sombra do marido, completavam sua mente. O torpor alí, deitado na cama, lhe trazia os olhos da velha. A dor da surra pouco importava. Bernardo e a menina haviam apanhado com a raiva do velho. De punho aberto, as barbas brancas encrespadas esvoaçaram até a moça desvençilhar-se do locatário do quarto. Sinceramente, Bernardo não guardava rancores. Tampouco tentara reagir. O aluguel do quarto era barato. Além do mais, o velho era ligeiramente mais alto do que ele e pesava algo como cem quilos a mais do que ele. O ato coadjuvava na cabeça do rapaz. A garota, que o maldissera e suas quinhentas gerações futuras, era insignificante. Hematomas por todo o corpo de uma pequena e magra moça de seus vinte anos. Branca como a neve, sua pele transformara-se em roxo. Tanto fazia. O quanto Bernardo gastava pela comida, teto e a limpeza das roupas, compesava.

13.8.08

VII

Pensou no velho, na boca sem dentes coberta pelo farto bigode grisalho. Pensou na barba grossa do velho e na saliva gotejando enquanto ele falava alto. Pensou na janela e no batente encardido de terra. A maçaneta rangia junto com a porta a se abrir. Naquele instante, duas horas da tarde quente de inverno, fingiu que dormia. Era mesmo a senhora dona da casa, esposa do velho. Em meio a penumbra e a fumaça do quarto, deitado, Bernardo rosnou e virou-se de lado. A senhora o chamou timidamente, com receio de acordá-lo. Ela falava algo sobre roupas e sobre o cheiro do quarto. Bernardo sentiu alguma culpa por fingir. A senhora era simpática e prestativa, apesar da submissão ao marido. Aquela maldita submissão ao marido. Segurou a respiração por alguns instantes. Repentinamente não prestava atenção em palavra do que era dito pela velha. Abruptamente. Como dinheiro atirado do alto de um prédio na rua Duque de Caxias às seis horas da tarde. Seu leve incomodo subia pelas paredes. Lembrou-se de um dia. Coisa de um mês atrás. As têmporas inflaram. O sangue. Irado, Bernardo mordia os lábios compulsivamente. Levemente, seu corpo inteiro começava a tremer. O dia em que a velha se mostrara. O dia em que ela revelou algo além da cordialidade e do préstimo corriqueiros. Numa das raras ocasiões em que Bernardo conseguira seduzir uma menina, levou-a para o quarto alugado. Eram, ainda, sete horas da noite. O velho costuma chegar às nove; ele trabalha em alguma coisa relacionada a transporte, motorista de táxi, frete ou ônibus urbano, algo do tipo. Pouco importava, o velho costuma chegar às nove e Bernardo resolvera levar a moça para o quarto. Pela maior liberdade com a senhora da casa, pela prestimosidade quase maternal dela para com Bernardo, ele decidira que não haveria maiores problemas em levar a moça até lá e ficar por alguns minutos. Quando assinara o termo de compromisso ao alugar o quarto, o velho havia sido muito claro: - Não é permitida a entrada de estranhos em minha ausência – a ausência do velho. Enfim, levou-a, levou a menina até o lugar. A velha vira os dois entrando e se deu por desentendida. O casal se trancou no quarto. Às oito horas a porta se abriu. Bruscamente alguém a empurrou pelo lado de fora. Barba e bigode dançavam na face transtornada da figura inchada e velha. Esgueirando por trás da porta, a sombra da senhora. Como duas esmeraldas verde-acinzentadas, os olhos dela esbugalhavam ouvindo tudo sem expressão qualquer.

8.8.08

VI

Acordou assustado. Algumas batidas na porta do quarto. Certamente era a mulher do velho gordo; fosse ele, não bateria antes de entrar. Afinal de contas a casa era propriedade do velho. Alí dentro ele encarnava todas as instituições. Fato que irritava deveras a Bernardo. Não haviam sido poucas as ocasiões em que fora surpreendido vestindo-se no quarto; ou ainda comendo bolachas recheadas. Bernardo adorava bolachas recheadas e o velho também. É, pior quando com as bolachas. O velho desatava a xingar o rapaz por sua mesquinharia - Onde já se viu: comer guloseimas escondido; negar comida a quem lhe mantêm. É um absurdo. Moleque desgraçado é você. Vai ver que comida minha mulher servirá na janta. Porque a pior pobreza, moleque, é a pobreza de espírito. Safado, você é pobre como eu, mas esse jeito de fazer as coisas escondido... Ah, isso é coisa que não tolero! E depois ainda reclama de que eu entre sem bater à porta. É um sem-vergonha, um mal caráter dos grandes. - Dizia o velho, em um volume tão alto de voz, beirando os berros, que era impossível contestá-lo. Bernardo sentia-se ultrajado. Aquela boca sem dentes cospindo enquanto o diminuia. Sentia-se o pior dos vermes em tais momentos; e pagava em dia, até aquele momento, as contas - até aquele momento. Punha-se a imaginar quando não mais o fizesse.
Tornaram a bater à porta. Certamente era a mulher do velho. Seu desejo era pular a janela. Aliá, seu desejo era continuar deitado. Mas mandar a velha embora seria um problema ainda maior do que levantar-se. O velho, com certeza, assim que soubesse faria questão de escorraçá-lo. Pensou mais uma vez nas possibilidades, antes de ouvir o ranger da maçaneta.

V

Pensando sobre o dinheiro, esqueceu do tempo. Lembrava de cada hora perdida no quarto imaginando o futuro grandioso reservado a ele. Um futuro custando a chegar. No momento duvidava, já, de que se concretizaria. E pensando assim, uma sensação de insuficiente ar o deixava tonto, uma infinidade de minúsculos quadrados coloridos embaralhavam sua visão e o ambiente aquietava-se. Durante quase meia hora ficou naquele estado. Era quase um transe. Bernardo gostava daquilo. Eram minutos de solidão. Apesar do mal estar, sentia conforto pela incomunicabilidade. Naquele estado, afastado de tudo e apenas com a tontura, tinha um álibi momentâneo para não pensar mais no dinheiro, no futuro.
Esperava o futuro grandioso, deitado em sua cama. Futuro de reconhecimento por sua inteligência. Considerava-se um raso conhecedor de variados assuntos e nisso guardava sua certeza de sucesso. Leitor de jornais e livros e simpático. Acima de tudo simpático, o que lhe permitia circular por altos círculos acadêmicos e artísticos. Mas, seu gosto pela cama, pelo quarto e pela noite, tolhiam um pretenso sucesso inicial com quem quer que fosse. Noites mal dormidas, manhãs dormidas demais e a bebida.

7.8.08

IV

Pensava, no escuro do quarto, o quanto levaria até conseguir algum dinheiro. Ainda guardava trezentos reais, porém o aluguel venceria em pouco mais de uma semana. O velho gordo era rigoroso nas cobranças, mas, como há três meses Bernardo recebera uma grana alta, ainda não havia tido problemas com o homem. Bernardo decidiu mudar-se para lá pela proximidade do bairro com o centro e pelo baixo preço oferecido pelo aluguel do cômodo. Isso quando recebera dinheiro pela última vez. Agora, estava profundamente arrependido com a escolha. Mil e quinhentos paus tinham desaparecido em menos da metade do tempo planejado. Ficava nervoso ao pensar que em alguns dias voltaria à penúria de antes. O nervosismo fazia-o fumar mais. A dor no peito era maior e o cheiro de sangue não cessava. Desde que saíra da periferia da cidade, se instalando naquele quarto, Bernardo não fazia nada além de dormir.

6.8.08

III

Enfim, um quarto sujo com alguns livros e uma televisão, além de uma cama e colchões velhos.
O hóspede fumava muito e o pulmão dava sinais, apesar da pouca idade do garoto. Eis a origem do mal-estar noturno, os cigarros. Na véspera, sentira falta de ar. Logo nas primeiras horas da manhã, ele acendeu um cigarro e a sensação de um soco no pulmão percorrera num frêmito a garganta, chegando rapidamente à boca. Parecia sangue, ou o indício de sangue, a lembrança do cheiro do sangue. Minutos depois sentia uma leve dormência na base da língua. Assustado, não esboçava intenções de procurar ajuda. Acendeu um novo cigarro. O peito doía cada vez mais.

5.8.08

II

No quarto, não havia muita coisa. Logo ao entrar, depara-se com uma cama curta, feita de madeira escura e detalhes em bronze, coberta com dois colchões velhos e um lençol velho e amarelado. Na parede oposta à porta, há uma pequena prateleira fixada e nela alguns livros além de um porta retratos barato; ao lado, uma estante escura pendendo para o lado da cama devido ao peso da televisão e do restante dos livros existentes no quarto que nela estavam. A única janela, alí, era baixa e dava para o portão azul. Por ser baixa, não muito acima da cintura de Bernardo, a janela permitia aos inquilinos do quarto usá-la como saída alternativa; tal ato, praticado com alguma frequência, manchava o batente da abertura e todo o entorno. Aliás, aquele não era o único lugar manchado. A terra vermelha da região é terrível, e as paredes verde-claro e o chão de azulejo branco possuíam muitas manchas avermelhadas, marcas de mãos e pés davam um ar sujo ao cômodo. O único reduto de clareza eram as portas do armário embutido recém pintadas.
Às noites, Bernardo começava a sentir forte falta de ar.

1.8.08

I

Entrou pela porta da casa. Uma porta de serviço, embutida em um grande portão basculante azul claro. A única entrada, pela frente. Uma rua com alguns Fícus pela calçada das casas vizinhas, em um bairro com vocação para a pobreza. Com alguma frequência, à noite, o perfume de fogueira toma o ar da região. Entrou pela porta. Era noite.
Ao pisar no interior do lugar, é inevitável que o cachorro lhe pule nas pernas. Um dálmata muito bem apanhado, alto e forte, com o gênio de uma criança de sete anos. Era apenas chutá-lo para que não incomodasse mais. Foi o que fez. Seguiu pela garagem até a porta da sala; entrou, e atravessando-a na ponta dos pés, chegou até seu quarto. Alugara o cômodo de um casal de velhos. Os dois tinham mais de setenta anos; o marido, sempre mal-humorado e ríspido, era alto e muito gordo e usava farta e longa barba branca.
Bernardo acabava de mudar-se para aquela casa. Sentiu-se mal ao sentar na cama, enquanto descalçava os sapatos.