23.9.06

Bernardo, mal-cheiroso, com roupas amassadas, olheiras roxas. Sobre os ombros tensos, retesado o pescoço curvava-se à frente. Seu tronco apoiava-se nos antebraços cruzados na borda da mesa.
Eles estavam perfilados diante da mesa de um bar. Bernardo levemente bêbado, tomava conhaque. A moça encontrava-se rigorosamente sóbria.
Ela sustentava sua altivez através de um leve e constante sorriso. Bernardo não lidava muito bem com aquilo, com aquele sorriso, seus olhos davam evidências: fixos adiante e inquietos. Algo acontecia em silêncio. Ele sabia que algo obscuro pairava naquele sorriso.

- O que há?
- Como assim?
- O que há, com você? Por que esses lábios arreganhados?
- Como assim?!
- Olha, você sabe que não precisa me esconder nada, que esse é nosso trunfo. Diga-me o que há.
- Não há nada. Diga-me você. O que há com você, não para de beber faz duas semanas.
- Estou muito bem. Talvez, um tanto cansado... Estou bem.
- Nota-se. Cheiro forte de cigarro, bêbado... Olha, aqui, para mim.
- Olho, claro, com todo o prazer. Mas este seu sorriso me tira do sério. Compaixão... Não sei o que faço nesses dias que passam... Tenho... Tenho me incomodado com alguma... coisa. Parece-me que por mais que tente, não há solo fértil para nenhuma semente... não para as minhas, sabe? Onde foi que perdi o fio da meada?
- Mocinho - ainda com dentes expostos entre os lábios semi-abertos, e já com um oragástico desdém no olhar -, não sei por que isso, mais uma vez.Você parace não enxergar o quanto...
- Ou foram todos os outros que perderam... - absorto na conclusão do pensamento. Agora voltando ao diálogo - Muito obrigado! Muito obrigado por não dizeres o que fica guardado aí por trás das sombrancelhas. Isso me ajuda muito. Podes me daixar só, se for o caso - agradeçerei. Se não for o caso de me dizeres o que esta pensando.
- Penso no quanto você tem prazer na autodestruição...
- Mas não é AUTOdestruição. Quem acaba comigo é quem me emprega. Pois me emprega mal.
- Penso no quanto tem prazer em que te assistam nesse estado.
- Não quero que ninguém me assis...
- Compreendo agora aquele desejo por estar doente que tinhas quando criança...
- Pois não me assista... Não, o sadismo nos consome, não é verdade? Satisfaz, algum sentimento de vez em quando, já que tudo parece tão banal e só o que é muito íntimo tem nos comovido... - soluçando umas poucas risadas - mas, e o que é realmente íntimo?!
- ...
- Quer ver o meu fim, sem ter que fazer nada. Sofrer junto a minha decadência e eximir-se de qualquer responsabilidade, é isso - assistir; afinal de contas esta também é a tua ruína... ela é nossa. Por isso o olhar de desdém, por isso... não consegue aceitar o fato - menospreza-o!

15.9.06

Modéstia (Arthur Schopenhauer)

Quem fez da modéstia uma virtude esperava que todos passassem a falar de si próprios como se fossem idiotas.

O que é a modéstia senão uma humildade hipócrita, através da qual um homem pede perdão por ter as qualidades e os méritos que os outros não têm?

9.9.06

A Perfeição (Clarice Lispector)

O que me tranqüiliza
é que tudo o que existe,
existe com uma precisão absoluta. O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete não transborda nem uma fração de milímetro além do tamanho de uma cabeça de alfinete. Tudo o que existe é de uma grande exatidão. Pena é que a maior parte do que existe com essa exatidão nos é tecnicamente invisível.
O bom é que a verdade chega a nós como um sentido secreto das coisas. Nós terminamos adivinhando, confusos, a perfeição.